sexta-feira, 2 de abril de 2021

Cristina

< Foto Por: DarkmoonArt_de />
< Registro: 15, categoria: Aconteceu Comigo />

Cristina era do meu plantão. Uma mulher exuberante, solteira com um filho. Era muito na dela, não falava muito sobre a vida pessoal, mas era boa gente. Tinha um jeitinho de falar com as mãos e às vezes apontava o dedinho e o girava quando algo era muito engraçado. Tinha 42 anos e era extremamente vaidosa, perua mesmo. Cheia de balagandãs, colares, brincão, muitas pulseiras e anéis. Usava roupas chamativas e caras mas por incrível que pareça era tudo de bom gosto. Mas não tinha namorado nem pretendente. Nos nossos plantões conversávamos um pouco sobre trabalho e vida pessoal. A única coisa que sabíamos bem era sobre o único filho, Bill. Freqüentemente a ouvíamos brigar com ele, pelo telefone, por causa das notas, da escola, da internet, coisas de adolescente. Ela se preocupava muito com ele por não ter pai e ficar muito tempo sozinho, porque ela, como todas nós, ficávamos muito fora de casa, por causa do trabalho. Nós nos dávamos bem apesar de não termos nos aprofundado muito na amizade. Eu me dou bem com todo mundo e não seria diferente com ela, até porque ela fazia parte do meu grupo de fim de semana. 

Umas semanas antes de morrer, estava se queixando de dores no peito, coisa boba. Só fui saber de certos detalhes depois. Disseram também que ela estava se abrindo mais, falando mais da vida, dos amores, inclusive conversando sobre religião. Ela era descrente das coisas mas estava interessada.

No sábado que morreu ela não foi trabalhar. Soube que tinha trocado de dia com uma outra pessoa e só iria no domingo. Foi a piscina, conversou com as amigas dela, e marcou de sair pra dançar, à noite.
Como não apareceu as amigas acharam que ela estava muito cansada e que fora dormir cedo porque trabalharia no outro dia. 

No domingo não foi ao escritório, deixando todas curiosas, achando que a noite tinha sido ótima e quem sabe? Estava dormindo, feliz, com alguém!!!

Gisele é muito louca.. meia hippie, de vanguarda, feliz com a vida, fantástica pessoa. Estava doida pra saber porque a Cristina não tinha ido trabalhar.. cachorra.. deu a noite toda e nem liga pra avisar que não vai sair da cama.. Entre espantada e divertida, estava Gisele, de plantão, sozinha, no escritório. Ligou 3897 vezes pro celular de Cristina, que caía só na caixa postal:

— Cris??? É a Gigi. Sua fdp, você nem veio né? Tava boa a noite e me deixou na mão? Me liga.
40 min depois de novo:
— Cris, sua cachorra!!! Já vai dar 11 horas e você nem pra me dar uma notícia!!! Deu tanto assim que não pode nem ligar avisando?? Tchau.
1 hora e meia depois;
— Cris, não é possível!! Onde você se meteu??? Me liga, estou ficando preocupada.

E foi assim o domingo inteiro. Só caixa postal. Nada da Cris.
Mal sabíamos que a essa hora, ela já estava do outro lado.
Às 16 horas, quase final de plantão, o telefone toca. Era o pai da Cris. Quando a Gisele atendeu, e ouviu o pai perguntando sobre a filha, gelou.
Ela não era de fazer isso. Nunca tinha faltado, Nunca deixava os pais, idosos, sem noticias. E o filho também a procurou e ninguém a encontrou.
Liga pro apartamento dela. Nada. Ninguém.
Decidem ir lá pessoalmente. No caminho ligam pros amigos, parentes. Ninguém a tinha visto, desde o dia anterior na piscina do clube.
Quando chegam no prédio vem o porteiro;:

— Que bom que chegaram. Já estava ligando pra vocês. Não sei o que aconteceu mas está vazando água do apartamento da D. Cristina. Já está até escorrendo pelas escadas do prédio e o vizinho de baixo está reclamando que está pingando água pelo teto.

O filho sobe com o porteiro. Nisso a empregada chega com as chaves. Sobem os três. Os pais ficam no hall do hotel a pedido do sindico, que está pensando o pior.
Abrem a porta. Água pela casa toda. Vinha do banheiro. Bill abre a porta, entra no banheiro e vê, com horror e desespero, a mãe sentada na banheira, nua. Morta.

Segunda-feira. Lá to eu, com sono, entrando no escritório e pensando: Putz.. mais uma semana.. Mal fiquei em casa... odeio meus plantões.. pqp!!!
Olho ao redor e estavam todas mudas me olhando. Bem diferente dos dias normais onde parecem estar numa feira, tagarelavam, falavam alto, uma zoeira só.
Algo estava errado, estranho. Minha secretaria vem ao meu encontro, olha pra mim aflita, e me diz:
— Fica calma, mas tenho uma noticia muito triste pra te dar.
Nem sei, exatamente, o que passou pela minha cabeça na hora. Mas sabia que alguém próximo havia morrido. Lembrei vagamente de um sonho que tive.. alguém morreu...
— A Cristina (ela continua) faleceu.
Não era possível! Mas como? A vi.. quando foi mesmo?? Ah na sexta feira.. Mas ela estava ótima. Foi acidente?
— Não. Não sabemos ainda exatamente, mas estão dizendo que foi infarto. Fatal.
Ela não era minha amiga, nem próximas éramos mas... que tristeza... Chorei a perda do Bill, da colega, de uma vida jovem ainda, com tanto pela frente. Chorei por não ter tido oportunidade ou até mesmo vontade de me aproximar mais, de saber mais, de ser mais amiga...
Todas nós sentimos muito esta perda. Ficamos muito abaladas porque foi inesperado. Nenhuma de nós estava preparada.
No enterro todas foram. Menos eu. Não vou em enterros. Quero ter comigo as lembranças boas. Não quero ver ninguém que gosto dentro de um caixão. Fria. Imóvel.
Quero lembrar como a pessoa era, cheia de vida. Prefiro assim. Tenho um problema seríssimo para aceitar a morte.

Um dia após o enterro, estava sozinha no escritório à noite. Eram quase sete.
Gosto de ficar lá nesse horário porque é mais calmo e tranqüilo para ler os processos.
Não sei se foi impressão minha mas a cadeira do salão de vendas rangeu. A porta entre o salão de vendas e a sala de reunião abriu, rangendo. Foi estranho mas podia ter sido o vento.
Fui ver se tinha alguma janela aberta. A luz estava acesa e quando ia puxar a porta pra fechar, vejo a Cris de pé, próxima a mesa de reunião do outro lado da sala.
Não tive medo algum.
Ela estava com uma blusa furta cor de seda. Eu adorava aquela blusa nela.
Estava arrumada como se tivesse ido trabalhar, normalmente.

Ela olhava para mim, com olhos indagadores... me olhava como se não entendesse o que estava acontecendo.
Para Cris, ela ainda estava viva. Pra ela a vida continuava, o trabalho, a família, o cotidiano ainda não haviam terminado. Eu ouvia, na minha cabeça, através daqueles olhos interrogadores, porque eu não passei a ela nenhum trabalho. Ela havia esperado o dia todo por uma palavra minha ou de alguma outra colega, algum cliente para atender, um telefonema qualquer.. esperou o dia inteiro e nada aconteceu... me perguntava: Por quê?? Por quê??
Foi quando me dirigi a ela, olhei dentro daqueles olhos e disse a ela, chorando, um choro que vinha dentro da alma:
- Cris, querida.. você morreu...
Estávamos falando telepaticamente...
Não sei descrever a vocês o que aqueles olhos me diziam e como diziam. Nem o que ela sentiu ao saber, por mim, que não existia mais neste plano de vida. Sei que não percebi nenhum rancor, nem revolta, nem tristeza. Apenas uma aceitação.
Ouvi uma última pergunta na minha cabeça:
— E meu filho? Onde está o meu filho???!!!
Ainda olhando para ela, a segurei pelos braços e respondi:
— Seu filho está bem. Bill está bem, está com os seus pais.
Seu rosto mudou... estava aliviada ao saber disto. Pude ver e sentir que ela se tranqüilizou.
Nos abraçamos longamente, nos despedindo. Mas não para sempre.
Antes pude dizer a ela tudo que eu senti, me desculpei por todas as oportunidades que me foram dadas para me aproximar mais dela, e eu não aproveitei. Me desculpei por trabalhar tanto e só pensar nisso. Pedi perdão por não tê-la visto como uma mulher que precisava de mais apoio e atenção pessoal. Pedi perdão por não perguntar sobre o dia dela, se ela estava feliz, se tinha algum problema, se precisava conversar. Nunca a chamei para sair, nem para beber alguma coisa depois do expediente. Pedi perdão por nunca ter me sentado ao lado dela e conversado amenidades. Pedi perdão por ter sido cega e egoísta e não ter sido AMIGA.

Quando tudo se foi, eu estava chorando convulsivamente, como estou agora.
Lembrar disto me emociona. Pude me despedir de uma possível amiga, que me fora levada antes que eu pudesse criar laços de amizade.
Fico grata a Deus por ter me dado essa oportunidade e penso que, a Cris sabe que eu precisava disto para não me culpar e ser melhor como pessoa.
Uns dois meses depois a revi, em uma outra situação. Conto para vocês numa outra hora.

< por: Adriana />

< Postagem original publicada em 18/04/2011 ás 12h21 no Aposentado Blog Histórias Sobrenaturais />

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